Muitas vozes na cabeça

Gosto de dizer que sou um autor tradutor, necessariamente nessa ordem. Foi como autor que estreitei minha relação com a literatura, lá pelos dezoito anos de idade, quando decidi por um par de motivos sentar em frente a uma tela em branco e descobrir se eu teria disciplina para escrever um romance.

Para surpresa da família e dos amigos – que tentavam com vontade me arrancar de casa – eu tive, e vinte anos depois continuo escrevendo, sendo publicado e, surprise, surprise, sendo lido também.

Meus dois primeiros livros foram então uma espécie de exercício estrutural. Ó, você precisa criar personagens e montar uma história para eles com início, meio e fim. Eu sabia pouco além disso, e foi por onde comecei. Mais tarde, entendi que havia algo mais importante ou pelo menos tão importante quanto a técnica, que era encontrar minha voz de autor.

A voz é uma mistura de elementos objetivos e subjetivos que só alcançamos com a prática e com o tempo. É o seu jeitão de dizer algo e também é esse algo. Um entendimento de que a linguagem também conta sua história.

Passei cinco anos sem publicar, trabalhando esse aspecto do meu texto. Escrevendo como um exercício para mim, sem me preocupar com o mercado. Voltei em 2010 graças a um convite, e tenho lançado um livro a cada 2 anos desde então.

Mas antes de ser autor e sequer sonhar que eu viveria de textos, fui um adolescente com a cabeça voltada para a área científica. Vesti jaleco e entrei num laboratório pela primeira vez com 14 anos de idade. Adorava fazer trabalho de campo, cultivar em placas de Petri, decifrar reações químicas. Nessa época, estudante de biotecnologia, estava desencantado com o inglês, veja só que ironia (a rima foi acidental).

Quando escolhi fazer faculdade de farmácia e me especializar em bioquímica de alimentos, precisei estudar artigos internacionais, já que os livros não acompanhavam a velocidade das descobertas científicas, e acabei fazendo as pazes com o inglês na marra. Mas isso é história para outro texto. O importante aqui é que, assim que decidi largar essa vida de laboratórios e indústrias, fui chamado para ser tradutor técnico, por conta dessa bagagem.

Acabei indo além da minha área e aprendendo um monte, vocês devem imaginar. Tradutor técnico pega desde textos de marketing de produtos cosméticos a manuais de motor de trator escandinavo, passando por tudo de estranho que existe no mundo.

A tradução literária chegou mais tarde na minha vida, por eu ser autor. E para minha surpresa, meu jeito de lidar com ela foi muito diferente do que eu vinha fazendo na área técnica. A ponte criada com o significado das palavras – o nome da raiz do milho na fase inicial de germinação, o equipamento usado para o teste de benchmark de uma linha de pendrive etc. – não me servia mais.

Bati a cabeça na parede no primeiro livro, tive um ritmo melhor no segundo, e entendi que a solução seria encontrar uma nova forma de me relacionar com o texto a ser traduzido. Antes de traduzir a palavra, antes de traduzir aquela fileira de adjetivos que assombra os livros de fantasia, eu precisava decifrar a voz do autor. Foi quando tive meu momento eureca, quando caiu a ficha lá do início do texto. Sou um autor tradutor, necessariamente nessa ordem.

Sei que cada um tem suas manhas de trabalho, mas queria encerrar o texto deixando duas dicas que me ajudaram bastante nesse processo de aproximação com a literatura por um ângulo diferente e que talvez possam ajudar vocês:

  1. Para conhecer a pessoa que eu estava traduzindo, fui para o Youtube procurar entrevistas dos autores. Leitura de texto em evento? Melhor ainda. Embora sejam vozes em sentidos distintos, há algo na entonação, nas pausas para respirar, no ritmo da fala, no humor ou na seriedade, que me ajuda a entender o que o autor está colocando no papel. Por mais síndrome de palhaço triste que o autor tenha, é a mesma pessoa ali, afinal.
  2. Ler 20-30 páginas do livro antes de começar a traduzir. Eu sei. O prazo é apertado e a situação de trabalho de um tradutor raramente é a ideal. Mas dá pra ler pelo menos 30 páginas antes de começar para entender a estrutura do autor. Perceber se as frases dele são curtas ou longas, ver se o texto é mais seco, se abre portas pro escapismo, se adota uma abordagem mais amistosa com o leitor. Ver se ele brinca com a sonoridade das palavras e não só com os significados. Descobrir o que ele esconde nas entrelinhas, se ironia, melancolia, um ar de suspense.

Um autor raramente está confortável no início do próprio texto, por isso vale avançar um tanto, o que for possível. Sei que está mais para olhar por um caleidoscópio do que um microscópio, mas prometo pra vocês, a voz do autor está ali, em algum lugar. E a tradução do livro fluirá de um jeito totalmente novo se você conseguir se conectar com ela.

Ufa, acho que é isso. Se gostarem das dicas ou quiserem que eu fale mais de um ponto específico, seja da vida de autor ou tradutor, avisem o pessoal do Ponte de Letras e volto a conversar com vocês.


Eric Novello é autor, tradutor e roteirista. Curte cactos, Mortal Kombat e tem uma coleção imaginária de vinis de blues. Seus livros mais recentes são Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues, 2014, e Deus Contra Todos, a ser lançado em breve. Para contatos, visite ericnovello.com.br ou escreva para cericn@gmail.com

2 comentários sobre “Muitas vozes na cabeça

  1. Adorei conhecer mais sobre sua experiência, como tradutor, Eric.
    Até o momento só li um conto seu, mas posso dizer que gostei muito.
    Obrigado por compartilhar um pouco do seu conhecimento.
    Abraço

  2. Eu leio e não paro para pensar nas muitas vozes. Mas agora parei e me dei conta de quando quero entender a letra de uma música eu “sapeco” na tradução. Agora imagino o tradutor e a vantagem de ser um autor tradutor.
    Parabéns e parabéns pelo texto que nem precisou de tradução, trabalho bem feito do autor.

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